Os dois fluxos básicos de informação na rede: os da barbárie e os civilizatórios.
texto base do encontro para debater Imprensa, Tecnologia e o Futuro do Jornalismo, em 09/10/2020, no Instituto de Estudos Avançados da USP, IEA-USP.
A imprensa cruzou os braços em 1995, quando a Web nascia. O mundo em volta andou, e os gigantes da tecnologia conquistaram o mercado e o domínio do centro de uma infraestrutura construída pelos cientistas da década de Woodstock, ungidos pelo espírito libertário da época, com o objetivo de fazer com que ninguém tivesse o controle da infraestrutura que nascia, crescer pelas pontas e emponderar a célula: o indivíduo. Essa infraestrutura, que gerou a nova mídia, é a internet, cujos fluxos de informações que procuramos sobre o mundo, em função do domínio do império dos gigantes da tecnologia, estão apoiados e formatados pela publicidade e suas necessidades, deixando a audiência exposta a operações de manipulação informativa em padrões que os acadêmicos, legisladores e mesmo (nós) jornalistas estão apenas começando a entender.
O que determina a formação da opinião pública no novo ecossistema — o planeta expandido pela rede das redes e as possibilidades que se abrem com os novos caminhos de interação e articulação de todos os tipos de relação humana: sociais, políticas e econômicas — são os fluxos de informações e as narrativas que carrega, responsáveis pelos fluxos de atenção. Estamos falando das redes sociais, autônomas e estimuladas, que precisam ser cobertas jornalisticamente com os algoritmos, todos os recursos técnicos que a rede permite e o melhor dos jornalistas e dos processos jornalísticos. Twitter, Youtube, Instagram, FB e o que quer que seja similar são ferramentas, plataformas, sobre as quais se constroem as redes sociais, formadas por cada um de nós, o público.
Só assim, cobrindo os fluxos digitais de informação e conversação, o jornalismo e os jornalistas terão condições de cumprir sua missão ampla e profundamente e, por isso e com os serviços gerados, chegar a novos modelos de negócios autossustentáveis. Para debater esse quadro, aceitei o convite para esta reunião no Instituto de Estudos Avançados da USP. É tempo para refletir sobre a matéria da Newsweek, abraçada pela imprensa de todo o mundo, em 1995: Internet? Bah, com o título de página “Why the Web won’t be nirvana”. Já sabemos que não é um nirvana, apesar de ser a utopia a perseguir, o sonho.
“Quando se vive em uma Era da Informação, a cultura se torna um grande negócio, a educação se torna um grande negócio, e a explosão da cultura por meio da explosão da informação torna-se cultura por si mesma, derrubando todas as paredes entre cultura e negócios”, alertava Marshall McLuhan na década de 1970. Situação real hoje: a cultura se forma todos os dias em tempo real nos fluxos de informações digitais, e as novas gerações já vivem em outro ambiente cognitivo. É a revolução da era digital. Sem essa consciência e uma utopia a perseguir, não será construído o lugar da imprensa no futuro.
Se quisermos sair da superfície, precisamos assumir de vez que o que vem ocorrendo são duas revoluções concomitantes: a primeira atinge as comunicações interpessoais, uma revolução de comunicação; e a segunda é de epistemologia e aprendizado. Construcionismo, aprender fazendo, a revolução de Dewey, Piaget e Papert, na livre reconstrução de uma formulação do cientista Walter Bender, do Media Lab, que em meados da década de 1990 desenvolvia pesquisas nessa área do conhecimento — revolução esta que vem convulsionando todas as antigas arquiteturas cognitivas.
A ignorância dessas duas revoluções pelos empresários da indústria jornalística, num primeiro plano, e pelos jornalistas, quase por consequência, teve enorme responsabilidade na dimensão da crise que se abateu sobre o setor desde 1995, quando a Web emergiu. Vivi e assisti a isso no Media Lab, do MIT, que frequentei por dezesseis anos, e também na empresa da qual sou acionista, o Grupo Estado.
Enquanto a maioria da indústria, sentada nos já fragilizados oligopólios locais, se recusava a estudar as possibilidades das redes digitais nascentes, empresas como o Google — hoje Alphabet — começavam a refletir sobre como fariam dinheiro com a rede. Claro: realizar vendas era o primeiro objetivo. Enquanto o New York Times jogava dinheiro fora comprando por 1,2 bilhão de dólares o Boston Globe, os entrantes desenvolviam novas redes com algoritmos (e junto bots, malwares e outros bichos do mesmo naipe), tendo como premissas para a construção desses algoritmos a emoção, pois vendas em qualquer ecossistema midiático depende dela, não há espaço para a razão.
Com isso, além de ampliar o alcance do verbo “vender” a patamares inéditos, conquistaram o domínio da lógica dos ambientes onde também ocorrem os debates cívicos e todo tipo de elucubração. Nenhuma empresa do setor jornalístico se dispôs a refletir um minuto sobre a possibilidade de provocar, fomentar e mediar processos de formação de redes em torno das questões básicas da sociedade: educação, saúde, infraestrutura, segurança, saneamento, ciência e tecnologia, com suas subdivisões, interações e articulações com os problemas sociais, políticos e econômicos que nos afligem. Apresentando essa cobertura jornalística para o público em páginas temáticas tecnologicamente dinâmicas, editadas (especificadas) e analisadas por jornalistas, preparadas para buscar patrocínio e outras formas de remuneração e não disputar cliques por cada mil acessos com os impérios tecnológicos.
Hoje, como o Tow Center da Columbia University demonstrou no Guide to Advertising Technology, publicado em dezembro de 2018, quem domina, quem manda na internet, são as tecnologias publicitárias; e, com isso, o debate cívico em todos os ambientes das plataformas sociais e nas redes socais que nelas se formam é regido pela lógica das vendas. Essa não é a única explicação para o processo contínuo da desinformação (mis-, dis- e mal-information), muito bem descrito no documento Information disorder: toward an interdisciplinary framework for research and policy making, da Comissão Europeia, que está servindo de base para o início da regulamentação da ação dos gigantes da tecnologia, mas é a principal.
Em 2008, ano da crise, quando já havia perdido o mercado de pequenos anúncios e começara a ficar sem os grandes anunciantes, a imprensa finalmente acordou. Mas só para as possibilidades de distribuição de informação na forma broadcast, num ecossistema midiático em rede. Continuou ignorando o fato de que no novo ecossistema em rede ninguém tem o domínio do público e todos são publishers porque não adquiriu nesses anos todos cultura para tanto.
A atual conformação do mundo exige um novo comportamento da imprensa e dos jornalistas. Não se trata de se colocar como influenciador, apesar de essa hipótese não ser descartável do conjunto. O desafio é trabalhar de forma organizada e coletiva — nenhum grande momento de uma redação se fez sem o trabalho de uma boa e coesa equipe — em torno de uma certa ideia do que é a sociedade, privilegiando o local, e suas possibilidades futuras. É preciso se abrir ao público, é preciso ouvi-lo antes de formular mensagens destinadas ao monólogo.
Bem ou mal, ainda que tardia, a reação está andando. A imprensa caminha em algumas direções e cobre com mais atenção e profundidade os movimentos dos novos impérios de tecnologia. Mas é possível fazer mais. É essa a proposta desta reunião promovida pelo Instituto de Estudos Avançados da USP. Vamos discutir o passado recente e o presente, refletindo sobre o futuro com a perspectiva de contribuir para ampliação, aceleramento e foco do caminhar da imprensa. Não há dúvida de que daqui para a frente a formação da opinião pública será cada vez mais autônoma, fragmentada e complexa. O desafio é ocupar os espaços dos fluxos de informação civilizatórios para enfrentar os da barbárie, hoje mais organizados do que a imprensa nas plataformas e nas redes sociais, e disputar espaço de forma contundente, tendo como premissa a razão para conquistar os fluxos de atenção da opinião púbica.
A alternativa é jogar a toalha e brincar de influenciador, o lobo solitário, explorando a ignorância do público e contribuindo para que a balbúrdia do novo ecossistema de comunicação da sociedade seja um fenômeno permanente e dominante, com as forças da barbárie comandando o processo. No Brasil, muito bem representadas pela rede social dos Bolsonaro, a mais organizada do País (ninguém tem o controle de uma rede social, mas pode ter o domínio como geralmente ocorre nas redes estimuladas).
Se quiser ir mais fundo neste tema, o debate no Instituto de Estudos Avançados da USP, o IEA-USP, está no vídeo deste link https://youtu.be/4bT3RbeU0I8?si=1nDBGiesT8-j5iXv