UMA NOVA IMPRENSA

Como a imprensa perdeu o passo no novo ambiente midiático

Rodrigo Mesquita
19 min readJun 18, 2020

Revista Piauí, junho de 2020

Rodrigo com o pai, Ruy Mesquita, no Alto Rio Negro, na Amazônia, em 1994: no ano seguinte, a Newsweek, então a maior semanal do mundo, diria que a internet era coisa de lunáticos CREDITO: ACERVO PESSOAL

A imprensa cruzou os braços em 1995, quando a web nascia comercialmente. O mundo andou, e os gigantes da tecnologia conquistaram o seu mercado e dominaram o centro de uma estrutura construída pelos cientistas da década de Woodstock, ungidos pelo espírito libertário dos anos 1960, com o objetivo de que ninguém tivesse o controle da nova infraestrutura, que cresce pelas beiradas e empodera a célula, o indivíduo. Essa infraestrutura, que gerou a nova mídia, é a internet, cujos fluxos de informações, em função do domínio dos gigantes da tecnologia, estão apoiados e formatados pela publicidade, deixando a audiência exposta a operações de manipulação informativa num nível que acadêmicos, legisladores e mesmo jornalistas somente agora começam a entender de fato.

Em 2008, ano da crise financeira, quando já havia perdido o mercado de pequenos anúncios e começou a ficar sem os grandes anunciantes, a imprensa finalmente acordou. Mas acordou apenas para o potencial da rede de distribuir informação, atuando no novo ambiente midiático em formato broadcast — de um ponto para milhares, ignorando a via de retorno. Desconsiderou o fato de que tinha passado a atuar num novo ecossistema de informação, onde ninguém tem o domínio da opinião pública e todos podem interagir, articular, escrever, editar e publicar — um ecossistema muito diferente do antigo meio jornalístico, fechado e reservado a poucos nos seus predicados de interação e articulação.

Com isso, o campo ficou aberto para aventureiros na área da comunicação. Alguns deles desprovidos de ética e de responsabilidade social, capazes de recorrer a todos os recursos a fim de conquistar a atenção dos leitores para seus devaneios, valendo-se de processos de interação e articulação que têm como premissa as inseguranças e temores do público. Essas pessoas eram e são ainda uma ameaça à democracia.

Nasci num lugar que era como o anexo de uma redação, a casa do jornalista Ruy Mesquita, meu pai. Apaixonei-me pelo jornalismo ouvindo histórias sobre meu bisavô, Júlio Mesquita, publisher inovador, que revolucionou O Estado de S. Paulo ao priorizar o interesse público e desvinculá-lo de grupos políticos e econômicos, gestando assim o jornalismo moderno brasileiro. Era um homem consciente de que o público é sempre o protagonista e de que existe grande diferença entre o que almejamos para a sociedade e a dinâmica concreta da história. Tive também o prazer de conviver muitos anos com meu avô, Júlio Mesquita Filho, um jornalista que dedicou sua vida inteiramente ao Brasil.

Estudei e estudo a história tendo como perspectiva que o jornalismo é o primeiro registro do que somos e vivemos. Tive a sorte e o privilégio de começar a carreira profissional numa redação brilhante, que estava em sua melhor fase e sabia que o bom jornalismo é antes de tudo um exercício coletivo: a equipe do Jornal da Tarde. Essa redação não se teria destacado de outras do seu tempo se não tivesse havido ali um casamento positivo e profícuo entre governança e profissionais.

Todos os Mesquita da minha geração estavam fadados a trabalhar na empresa. Não almejava chegar à direção. Queria ser só jornalista e, como tal, conquistar o respeito dos profissionais. Desejava também fazer-me repórter especial: um jornalista que investigasse o que ocorre nos confins, que podem ser tanto as fronteiras de ocupação do planeta como uma esquina de São Paulo à qual poucos deram atenção.

Em 1976, com 22 anos de idade, minha primeira experiência na redação foi na mesa de triagem de telegramas. Comandava um grupo de contínuos que fazia a primeira separação de todo o material recebido da então maior rede brasileira de captação de informações nacionais, a da S.A. O Estado de S. Paulo, e das agências de notícias internacionais. Não havia melhor ponto de observação da redação, do comportamento dos jornalistas e de como tratavam a maçaroca que recebíamos diariamente. Pouco a pouco, comecei a ascensão profissional, passando por diversas editorias do Jornal da Tarde, na função de repórter, copidesque, subeditor, pauteiro, repórter especial e editor.

Tenho saudade dessa época e guardo o prazer de ter me envolvido, entre outros trabalhos, na cobertura (como repórter, pauteiro ou editor) da construção do trecho Rio-Santos da BR-101, responsável pelo deterioramento do litoral paulista. Também atuei na cobertura da campanha das Diretas Já, da ocupação do Planalto Central e Sul da Amazônia e na série de reportagens especiais do Jornal da Tarde — como Guerra aos que Querem Destruir Nosso Litoral, A República Socialista Soviética do Brasil e Os Guerrilheiros da Prosperidade Nacional. Como editor da área internacional do Jornal da Tarde, fui responsável pelo furo mundial sobre o início da Guerra das Malvinas, em 1982, que cobri como enviado especial, mesma função que me coube na cobertura da primeira fase da Guerra Irã-Iraque, em 1980, e da morte de Tancredo Neves, em 1985.

Todos esses trabalhos tiveram diversos desdobramentos ao longo dos anos. Os que causaram maior impacto em minha vida foram a cobertura da construção da BR-101 e a série de reportagens Guerra aos que Querem Destruir o Nosso Litoral. Esta última começou quando detectei, no início dos anos 1980, um processo de grilagem de 60 dos 90 km do litoral do Paraná, feito com uma violência desconhecida na região: homens armados comandados por um sujeito egresso de El Salvador, búfalos sendo usados para destroçar as roças das dezenas de vilas da região, que foram cercadas por arame farpado, e centenas de desmatadores desalojados das áreas inundadas de Itaipu que passaram a destruir as matas.

A apropriação das terras ia das praias às encostas da Serra do Mar, cuja altitude havia sido adulterada num processo em que o grupo empresarial responsável pela devastação conseguira financiamento do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que não existe mais, para reflorestamento de palmito-juçara. Piada de mau gosto: não havia nem há tecnologia para isso. A Companhia Agropastoril Litorânea do Paraná (Capela), subsidiária de um grande grupo empresarial com interesses na exploração siderúrgica em Minas Gerais e negócios no Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, era a responsável pela operação de guerra. Naquele local, viviam as últimas comunidades caiçaras do litoral Sul do Brasil, e os céus desabavam sobre elas. Convivia com os caiçaras desde a infância e compartilhei do seu sentimento de fim de mundo e de sua revolta com a situação.

Fizemos centenas de reportagens, em quase dois anos de muito trabalho, com envolvimento direto meu, de Dirceu Pio, Randau Marques, Laurentino Gomes, Celia Romano e outros jornalistas do Grupo Estado. O movimento ambientalista era incipiente na época e mantinha uma aproximação forte com o Jornal da Tarde em função da cobertura que o diário fizera da reação da sociedade contra a construção de uma usina atômica na Jureia, no litoral paulista, e de um novo aeroporto para a capital paulista em Caucaia do Alto, no município de Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo. Tal aproximação acabou gerando um processo de articulação entre o jornal e aquele setor da sociedade civil, e por isso foi importante em minha vida: o jornalismo só tem sentido enquanto ferramenta de articulação da sociedade. Esse trabalho me jogou de braços abertos nessa direção.

Em 1986, a Capela foi obrigada a se retirar do litoral do Paraná — que, somado ao litoral Sul de São Paulo, é hoje o que resta da costa brasileira não destruída pela especulação imobiliária — e criamos a SOS Mata Atlântica, fundação para perpetuar os cuidados com o litoral e a província de Mata Atlântica. O primeiro presidente foi Fábio Feldmann, que ficou no cargo por cerca de seis meses. Na eleição de 1986, ele resolveu se candidatar a deputado federal. Acreditávamos que não conseguiria o cargo, mas seus eleitores acabariam ficando como o cabedal da fundação: houve uma enorme abstenção, e ele se elegeu.

Sobrou para mim, que não ambicionava ser presidente da SOS Mata Atlântica por causa da minha atividade jornalística. Sempre tive preocupação com a questão ambiental, mas meu único ativismo é o jornalismo, e meu envolvimento com os ambientalistas ocorreu em função da minha solidariedade aos caiçaras ameaçados pela Capela. Criamos a campanha “Estão tirando o verde da nossa terra”, conseguimos uma doação de 400 mil dólares da Fundação MacArthur e, a partir daí, estruturamos a entidade durante meus seis anos como presidente, em trabalho voluntário, sem nunca termos recorrido a ela para nos promovermos e sempre em respeito pelo conselho da entidade, que representava de fato a sociedade civil.

Em 1984, assumi a função de editor-chefe, ou secretário de Redação, do Jornal da Tarde por aspiração e delegação da própria redação. Foi um período duro. A empresa vinha promovendo cortes contínuos havia anos, em função de um empréstimo em dólares para construir seu novo prédio e da primeira grande desvalorização do cruzeiro por Delfim Netto, em 1979. Assumi a redação no momento que Fernando Mitre saía para criar a revista Afinal, levando consigo o primeiro homem de cada editoria. Eu buscava na indústria jornalística movimentos que indicassem a criação de novas oportunidades e acabei me fixando nas atividades da Reuters, que, depois de passar por uma situação ruim nos anos 1960, tinha se voltado para as novas tecnologias e lançado para o mercado financeiro o primeiro serviço de informações econômicas em tempo real.

Em 1988, o Grupo Estado sofreu uma profunda reestruturação, e fui para a Agência Estado, unidade operacional do grupo fundada em 1970 para aglutinar toda a estrutura de captação de informação da empresa — historicamente a sua força e grande diferencial competitivo –, servindo aos dois jornais (O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde) e à rádio Eldorado, também parte da empresa. A Agência Estado era um túmulo para os aspirantes ao vedetismo.

Comandada pelos jornais, essa plataforma funcionava conforme o deadline das redações do Estado e do JT. Em São Paulo, tinha um gestor e meia dúzia de jornalistas que caçavam matérias nas redações para distribuir a vários jornais brasileiros. A essa altura, a Reuters já tinha virado o jogo e se transformado em uma empresa pós-moderna de jornalismo internacional, oferecendo serviços tradicionais para os meios de comunicação e novos para o mercado financeiro.

Aproximei-me de Enrique Jara, jornalista uruguaio que comandava a Reuters na América Latina, a partir de Buenos Aires, onde na época ficava o principal escritório da empresa no continente. Aprofundamos as prospecções e os estudos sobre novos serviços para a nova empresa que estávamos criando. A equipe liderada por mim reformulou toda a cadeia de captação de informação do Grupo Estado, na época a rede de maior capilaridade do jornalismo brasileiro. Com seus processos renovados, deixou de trabalhar em função do deadline dos jornais e abraçou um novo sistema, compatível com a necessidade de uma empresa de informação que servia dois jornais, uma rádio e o mercado consumidor de informações, abrindo oportunidades para todos os envolvidos. Naquele início nos servíamos da Arpanet (rede de computadores que precedeu a internet) ao fax, passando pelo telex, para distribuir os serviços.

Mergulhamos em seguida nos mistérios das novas telecomunicações, com toda a sua parafernália de computadores e softwares, e os desvendamos, ou pelo menos perdemos o medo deles. Tanto jornalistas quanto profissionais da área comercial do tempo do papel se tornaram capazes de especificar softwares junto ao pessoal da tecnologia.

O objetivo era criar um serviço de informação econômica em tempo real para o mercado financeiro, na época o único segmento da sociedade aparelhado para recebê-lo e disposto a pagar por isso. E um software para esse mercado precisa de alguma sofisticação. Não existe de fato serviço de notícia em tempo real, mas entregávamos o pregão das Bolsas usadas pelo mercado brasileiro com um delay de, no máximo, um segundo e meio (o “tempo real”), com uma cobertura jornalística técnica, que incluía notícias que afetavam os mercados, análises, o diabo. Para se ter ideia, distribuímos num dia um volume de informações equivalente ao publicado em um ano pelo Estado de S. Paulo. E cada uma das telas dos nossos clientes era totalmente personalizável, nenhum deles via exatamente os mesmos dados, e cada um podia montar suas telas em função dos mercados em que trabalhava e do público a que servia.

Como dizia Enrique Jara, tínhamos a obrigação de focar nisso não só porque era um bom negócio, mas porque os classificados — que eram a base de sustentação de todos os jornais do mundo — acabariam por migrar inexoravelmente para os novos sistemas. Foi recorrendo a essa argumentação que defendi o investimento junto ao conselho da empresa em 1990. Seria o primeiro passo para entendermos o que era trabalhar em rede, sem o domínio do público, sem barreiras de entrada, num mundo com vias de duas mãos em que todas as pessoas são publishers.

A Reuters tinha o “Rolls-Royce”: um serviço desenhado para o topo do mercado global, pelo qual a agência firmava contratos leoninos e cobrava preços estratosféricos. Construímos o Fuscão envenenado: um serviço desenhado para a média do mercado brasileiro, com preços razoáveis, contratos amigáveis e — a grande inovação — meios alternativos de distribuição. Além de linhas telefônicas privadas da Embratel, que não garantia qualidade nem escala, utilizávamos para a distribuição dos serviços, de forma pioneira em todo o mundo, a sub-banda de radiotransmissão (faixa em geral ociosa e algumas usadas para carregar bits) das rádios FMs. E nasceu então a Broadcast, empresa que em pouco tempo conquistou o mercado brasileiro, mostrando à Reuters que esse mercado era maior do que imaginava a agência internacional.

Lançamos a Broadcast em 1991. Três anos depois, os investimentos estavam pagos. Com esse serviço e outros igualmente inovadores, mas com menos tecnologia agregada, a Agência Estado começou a caminhar para uma liderança inequívoca do mercado. Para os envolvidos em todas as áreas da empresa, foi um prazer construir a nova Agência Estado, uma unidade de negócios aberta ao mercado, e atuar nela. Tínhamos liberdade para criar, trabalhar e muita responsabilidade, sem os cacoetes e vícios dos jornais e sem a pretensão de sermos os xerifes da razão. Nosso objetivo era interagir com o público e, assim, servi-lo, como no início da história moderna dos jornais.

Quando assumimos a unidade operacional, ela faturava cerca de 400 mil reais por ano, valor que não se realizava integralmente por desleixo na cobrança. Na realidade a agência estava totalmente voltada para os veículos da casa. Entregamos uma nova empresa com mais de 100 milhões de reais de faturamento, com margem de lucro de quase 30%, líder do mercado de informação financeira e de todos os outros em que atuava — uma empresa focada nos clientes, entre os quais se incluíam, é claro, os jornais da casa. Situação que perdura até hoje, apesar de não ter sido feita nenhuma inovação substancial.

O aprendizado estava só começando. No início dos anos 1990, fui convidado pela Innovation International Media para um encontro de jornalistas da América Latina na Universidade Harvard. Apresentei no seminário minha visão sobre o futuro das empresas de informação. Na plateia, estava Jerome Rubin, chairman do programa News in the Future (Notícias no futuro). O programa fazia parte do Media Lab, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Rubin tinha fundado e depois vendido a primeira grande empresa eletrônica de informações jornalísticas, o LexisNexis, uma base de dados dinâmica da jurisprudência norte-americana que indexava diariamente cem dos maiores jornais dos Estados Unidos. Terminado o seminário, Rubin, que com o tempo se tornou meu pai norte-americano, disse que tinha gostado da apresentação e que eu deveria participar como representante do Grupo Estado no News in the Future.

Convenci o Grupo Estado e fui. Minha vida profissional já tinha mudado radicalmente. Não imaginava que poderia ser muito diferente do que era. Mas mudou outra vez e me trouxe a esperança de, no futuro, voltar a atuar como repórter dos confins. Agora não numa esquina de São Paulo ou nos limites da Amazônia, mas cobrindo o processo de ocupação da última fronteira da humanidade nos confins da rede formada pela internet, que deflagrou o processo de inovação mais radical e violento já vivido pelo ser humano.

Mais do que de invenções, como ocorreu na Revolução Industrial, o resultado prático — em termos de produtividade, criação e distribuição de riqueza — depende agora do entendimento da sociedade sobre o que é a rede das redes, do amadurecimento de sua visão a respeito dessa tecnologia e do modo de usufruir dela. É um trabalho para essa geração e as futuras. Ainda está no início de sua expansão esse emaranhado de sistemas criado pela internet, com as invenções que nela se dependuram e dela dependem, ampliando os limites e possibilidades das sociedades com novos caminhos de interação e articulações de todo tipo: sociais, políticas e econômicas.

Era esse o foco do programa do Media Lab: ajudar a indústria jornalística a entrar com o pé direito no tempo das redes, que são uma extensão do mundo analógico e sua única possibilidade de rejuvenescimento. Todas as grandes empresas e grandes veículos do jornalismo norte-americano estavam lá, do New York Times à Time Warner. Também marcava presença o McCann Worldgroup, agência internacional de publicidade.

Em outros programas específicos, estavam as operadoras de telefonia, a indústria de software e games, entidades médicas e governamentais, além de empresas de vários outros setores, de todo o mundo. O Media Lab tinha sido fundado por Nicholas Negroponte e Jerome B. Wiesner em 1980. Wiesner, que fora conselheiro científico de John Kennedy e presidente do MIT, deu guarida ao jovem Negroponte, que havia previsto no final dos anos 1970 a convergência das mídias. Juntos, eles criaram o laboratório de tecnologias digitais do MIT, que teve enorme responsabilidade na gestação da revolução tecnológica. Com certeza, de todos os setores da economia que participavam dos programas do Media Lab, o mais reticente e arrogante era a indústria da informação. Em grande parte por causa de seu domínio, de mais de um século, sobre a opinião pública.

Seria uma digressão expor aqui parte do que aprendi sobre o mundo atual e os caminhos futuros durante dezesseis anos de convivência (dez deles como representante do Grupo Estado e os últimos seis como pesquisador afiliado) com esse centro de pesquisas e estudos de excelência mundial. Mas não posso deixar de mencionar dois ensinamentos que viraram totens para mim.

Hoje, todos nós temos consciência de que vivemos num mundo “em beta”, ou seja, envolvido num processo de mudança contínuo e em alta velocidade. Naquela época era diferente, mesmo lá no Media Lab não se falava nisso com a contundência de hoje, mas estava muito enraizada a certeza de que vinham sendo fermentadas duas revoluções, como disse o cientista Walter Bender: “A primeira, uma revolução de comunicação interpessoal. A segunda, não uma revolução da tecnologia, mas da epistemologia e do aprendizado. Construcionismo, aprender fazendo, a revolução de Dewey, Piaget e Papert. Nela, o aprendizado acontece melhor não no espaço formal da sala de aula. Acontece em aplicações concretas. Eis porque devemos buscar construir ambientes para aprender fazendo.”

Ao analisar a segunda revolução, Bender antevia com clareza que a sociedade teria pela frente uma nova arquitetura cognitiva, um novo ambiente cognitivo, que com o tempo seria dominante. Daí a necessidade de construir ambientes que permitam fazer. O cientista dirigia o programa News in the Future, e poucos anos depois se tornaria o braço direito de Nicholas Negroponte na direção operacional de todo o Media Lab. Bender desenvolveu também as primeiras pesquisas sobre redes sociais, que no Media Lab eram chamadas “redes orgânicas”.

Entrei nesse think tank em 1994 e ter me conscientizado de que eram duas, e não uma, as revoluções em processo — a tecnológica e a epistemológica — foi algo fundamental para poder armar e desenvolver o projeto da Agência Estado, que não parou de inovar. Outra noção importante foi a de que software é informação, pois compõe e alavanca a informação jornalística e qualquer outra. Isso aprendi com os cientistas do Media Lab e com brasileiros como Demi Getschko, figura fundamental no desenvolvimento da Agência Estado.

Hoje, não tenho dúvida de que a ignorância a respeito desses dois fatores de grande parte da indústria jornalística e, por consequência, de jornalistas teve enorme responsabilidade na dimensão que alcançou a crise no setor quando a web emergiu. Vivi e assisti a isso de dentro do Media Lab e também do Grupo Estado, do qual sou acionista. Em 1995, a Newsweek, então a revista de maior tiragem impressa de todo o mundo, publicou um texto chamado The Internet? Bah. O subtítulo era menos agressivo, mas talvez mais arrogante: Why Cyberspace Isn’t and Will Never Be Nirvana (Por que o ciberespeaço não é e nunca será o nirvana). Nicholas Negroponte era apresentado como um lunático, e o Media Lab, como um local de formulação de delírios.

Entre os tópicos analisados sem nenhum fundamento pelo autor do artigo na Newsweek estava a possibilidade de realizar vendas por meio da rede de computadores. Ele argumentava que era uma alucinação imaginar que a internet iria acabar com a célula mater do capitalismo: o vendedor. Na empresa de minha família, questionavam se eu estava querendo dizer que nosso negócio iria acabar. Tentava explicar, sem sucesso, que o negócio não iria acabar, mas que sofreria profundas mudanças, como toda a sociedade, e que, caso não nos preparássemos para isso, iríamos ter sérios problemas pela frente. Deveríamos começar a nos preparar para enfrentar o tsunami bem equipados e iniciando já naquela época a adaptação dos processos clássicos do jornalismo para uma sociedade ativa na rede e com canal de volta. Mas ficamos isolados na Agência Estado. O Grupo Estado e sua direção continuaram vinculados à era industrial.

A maioria da indústria jornalística, acomodada em já fragilizados oligopólios locais, se confortou com a arrogante e desacertada visão do artigo da Newsweek, sem se preocupar em estudar o que significava sair de um ecossistema de informação broadcast, no qual tinha domínio sobre o público, e entrar em um ecossistema em rede, o ambiente midiático da era da informação, onde já não teriam domínio sobre ninguém. Enquanto isso, empresas como a Google, hoje da Alphabet, começavam a refletir sobre como fariam dinheiro. Realizar vendas foi o primeiro objetivo.

Ora, vendas, tanto no ecossistema analógico broadcast quanto no ecossistema em rede, têm como premissa provocar emoção e desprezam totalmente a razão. O algoritmo tem a capacidade de formar redes a partir do nada e aprender com o tempo. E o tempo corria a favor dos novos entrantes. Nenhuma empresa do setor jornalístico se dispôs a refletir nem um minuto sequer sobre a possibilidade de provocar, fomentar e mediar processos de formação de redes em torno das questões básicas da vida das pessoas — educação, saúde, infraestrutura, segurança, saneamento, ciência e tecnologia –, em suas interações e articulações com o conjunto dos problemas sociais, políticos e econômicos.

Enquanto empresas como a The New York Times Company jogavam dinheiro no lixo comprando por 1,1 bilhão de dólares o Boston Globe para vender anos depois por 70 milhões de dólares, enquanto a imprensa e os jornalistas continuavam convencidos, como parecem estar até hoje, de que com suas marcas e nomes continuariam donos da opinião pública, os novos entrantes desenvolviam com algoritmos (e, junto, bots, malwares e outros bichos do mesmo naipe) as próprias redes, tendo a emoção na base dessa construção e com o objetivo de realizar vendas.

Por isso, hoje, quem domina a internet — e manda nela — são as tecnologias publicitárias, como demonstrou o Tow Center da Universidade Columbia no documento Guide to Advertising Technology (Guia para a tecnologia publicitária), publicado em dezembro de 2018. Por isso, o debate cívico em todas as plataformas sociais e nas redes que se formam em torno delas é regido pela lógica das vendas. Essa não é a única explicação para o processo contínuo de desinformação que nos assola — muito bem descrito no documento Information Disorder: Toward an Interdisciplinary Framework for Research and Policy Making (A desordem da informação: rumo a um arcabouço interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas públicas), encomendado pelo Conselho da Europa, que está servindo de base para o início da regulamentação da ação dos gigantes da tecnologia –, mas é um dos bons motivos.

O que determina a formação da opinião pública nesse novo ecossistema — o planeta expandido pela rede das redes e as possibilidades que ela abre com seus novos caminhos de interação e articulação de todos os tipos de relação humana — são os fluxos de informações e as narrativas que carregam, responsáveis pelos fluxos de atenção. Estou falando das redes sociais, autônomas ou estimuladas, que precisam ser cobertas jornalisticamente com o algoritmo e todos os recursos técnicos que a rede permite e também com o melhor dos jornalistas e apurações jornalísticas de fôlego. Twitter, YouTube, Instagram, Facebook e similares são ferramentas, plataformas, a partir das quais se formam as redes sociais, que são de cada um de nós, o público.

A insistência da imprensa em apresentar as chamadas fake news como as principais responsáveis pela balbúrdia que envolve todo o planeta contribui para criar ainda mais confusão na cabeça do público, abandonado à própria sorte. Sem nenhuma mediação da imprensa que, omissa em relação ao fato de que as notícias abrem a porta para a participação, não cumpre sua missão e deixa de lado sua razão de ser: ajudar-nos a entender, a navegar, a separar a ordem do caos, porque a ordem surge do caos graças à habilidade de enfatizar aquilo que é importante e universal.

A nova realidade exige um novo comportamento da imprensa e dos jornalistas. Não se trata de o jornalista se colocar como influenciador, uma hipótese não descartável desde que inserida no todo. O desafio é trabalhar de forma organizada e coletiva, regidos por uma certa ideia do que é a sociedade (local) e quais são suas possibilidades futuras, com uma governança adequada ao tempo das redes. E, mais do que isso, abrir-se ao público, ouvindo-o antes de formular mensagens, que devem sempre estar abertas ao retorno, ao diálogo.

Bem ou mal, a reação está ocorrendo. A imprensa tem coberto com mais atenção e profundidade os movimentos dos novos impérios de tecnologia. Mas isso é pouco. É possível fazer mais, desde que os fluxos de informação e atenção passem a ser cobertos jornalisticamente com o melhor do algoritmo e jornalistas competentes. Não, isso não é um sonho nem um delírio. Existem na internet dezenas, senão centenas, de empresas que oferecem serviços sofisticados tanto de curadoria quanto de monitoramento, e não só para classificar como positivas ou negativas as manifestações do público sobre determinado tema. Elas oferecem também serviços que permitem identificar quem é quem numa rede social e o que determinada rede social está publicando.

As empresas jornalísticas poderiam e deveriam ter os próprios sistemas para fazer isso — ouvir e prospectar de forma contínua a opinião pública — e acompanhar a reação das pessoas ao que está sendo publicado, apresentando essa cobertura jornalística em páginas tecnologicamente dinâmicas na internet, analisadas e comentadas por jornalistas. Esse processo com certeza contribuiria para a construção de novos modelos de negócios. Restringir tal possibilidade à venda de assinaturas significa condenar à morte a maioria dos atuais players da indústria jornalística.

É preciso ter consciência de que, daqui para a frente, a formação da opinião pública vai ser cada vez mais fragmentada, complexa e autônoma. O desafio é ocupar os espaços civilizatórios dos fluxos de informação para enfrentar os da barbárie, estes mais organizados do que a imprensa nas redes sociais atualmente. Como as hordas da barbárie não têm passado nem compromissos com nada além de sua própria verdade, conseguem avançar rápido em épocas de rupturas tão profundas quanto as que estamos enfrentando. Por tudo isso, é preciso contribuir para que as novas gerações de jornalistas entendam que não se faz jornalismo sem ouvir e prospectar o público, o protagonista de toda a história.

“Quando se vive em uma era da informação, a cultura se torna um grande negócio, a educação se torna um grande negócio, e a explosão da cultura através da explosão da informação torna-se cultura por si mesma, derrubando todas as paredes entre cultura e negócios”, alertava o teórico da comunicação Marshall McLuhan, na década de 1970, quando o processo apenas engatinhava. A imprensa, para ter sentido, tem de ser capaz de cobrir a nova realidade — a cultura se formando em tempo real nos fluxos da rede — e fazer o que está ao alcance para conquistar competências para isso.

A alternativa é jogar a toalha e brincar de influenciador, o lobo solitário, explorando a ignorância do público e contribuindo para que a balbúrdia seja um fenômeno permanente e dominante, com as forças da barbárie comandando o processo — no Brasil, muito bem representadas pelas redes sociais dos Bolsonaro, as mais organizadas desse novo ecossistema de comunicação da sociedade.

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Rodrigo Mesquita

in a world of deep involvement, identity seems to evaporate - McLuhan